Carta das Sociedades Médicas à ANVISA
Carta das Sociedades Médicas à ANVISA
Pedido público de providências quanto ao uso indiscriminado de implantes hormonais no Brasil
Ao Diretor-Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária Ilmo. Dr. Antônio Barra Torres.
Nos últimos anos, a população brasileira vem sendo exposta a uma alarmante e crescente utilização indevida de implantes hormonais. Esses implantes, frequentemente contendo esteroides anabolizantes, são divulgados e prescritos como
parte de estratégias que fazem apologia a um corpo perfeito e a um suposto estilo de vida saudável.
A aplicação desses implantes está atrelada a um viés altamente comercial, sendo vendidos nos próprios consultórios médicos como “chip da beleza”, tratamento da menopausa, antienvelhecimento, para redução da gordura corporal, para aumento da libido e da massa muscular. A prescrição desses agentes está banalizada e disseminada, com divulgação livre nas redes sociais, sem o devido respaldo ético e científico da Medicina Baseada em Evidências.
Os implantes hormonais não são aprovados para uso comercial e produção industrial pela ANVISA (exceto o etonogestrel – Implanon – aprovado como anticoncepcional).
São manipulados, não possuem bula ou informações adequadas de farmacocinética, eficácia ou segurança. Os desfechos a longo prazo são desconhecidos.
Os implantes hormonais podem conter inúmeras substâncias, embora normalmente sejam compostos por testosterona ou por gestrinona, um progestágeno com efeito androgênico. Combinações contendo estradiol, oxandrolona, metformina, ocitocina, outros hormônios e NADH também são produzidas.
A “chipagem hormonal”, proposta por falsos especialistas e vendida como a “medicina moderna” é, na realidade, algo antigo e ultrapassado, pois usa medicamentos abandonados pela Medicina Baseada em Evidências (como a gestrinona e a oxandrolona).
A monetização desse comércio através de venda direta ou parcerias comissionadas, bem como a promoção de cursos não científicos ferem todos os princípios éticos, legais e humanos.
Não existe dose, tampouco acompanhamento médico que garanta segurança para o uso de hormônios para fins estéticos ou de performance. Os efeitos colaterais podem ser imprevisíveis e graves, com os riscos ultrapassando qualquer possível benefício.
Casos de infarto agudo do miocárdio, de tromboembolismo e de acidente vascular cerebral vêm se tornando frequentes. Complicações cutâneas, hepáticas, renais, musculares e infecções estão associadas ao uso dos implantes. Manifestações psicológicas e psiquiátricas, como ansiedade, agressividade, dependência, abstinência e depressão são cada vez mais comuns.
Além destes efeitos, nas mulheres os riscos envolvem desenvolvimento de acne, hirsutismo, queda de cabelo, aumento do clitóris, engrossamento da voz (irreversível), irregularidade menstrual, infertilidade, mal formação fetal, entre outros.
Em caso de alguma complicação do uso de implantes hormonais, podem surgir dificuldades técnicas para a sua retirada, situação que vem se tornando frequente, conforme vídeo gravado por um colega cirurgião vascular Dr. Kasuo Miyake:
https://www.instagram.com/reel/CsBsRxIA6kz/?igshid=ODhhZWM5NmIwOQ%3D%3D
Os implantes hormonais não permitem ajuste de dose, controle da liberação e do tempo de atividade.
O argumento comumente utilizado pelos prescritores, desprovido de base científica e nitidamente comercial é de que “A testosterona está baixa na mulher na menopausa.
Prescrevemos testosterona e a vida da mulher se transforma – Testo é vida”.
Fisiologicamente, 1) no climatério, o hormônio que sofre redução é o estrogênio, 2) a testosterona diminui lentamente na mulher desde os 20-30 anos de idade, 3) não há diferença no nível de testosterona em mulheres antes ou após a menopausa na mesma idade, 4) não há indicação para dosar testosterona na mulher, exceto na presença de sinais de hiperandrogenismo, e 5) o nível baixo de testosterona na mulher é normal e não acarreta manifestação clínica.
A única indicação de uso de testosterona na mulher é para um teste terapêutico de exceção, por 3 a 6 meses, após a menopausa, com diagnóstico de distúrbio de desejo e excitação sexual, que difere de diminuição de libido isolada, e segue uma série de critérios que precisam estar presentes por pelo menos 6 meses, após serem excluídas outras causas, como terapia estrogênica insuficiente, depressão, obesidade, uso de medicamentos, doenças ginecológicas, problemas de relacionamento, entre outras.
Importante ressaltar que o uso de testosterona para o tratamento de homens trans é balizado por evidências científicas e resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Ministério da Saúde.
No esporte competitivo, o uso de gestrinona ou qualquer outro agente anabolizante é proibido pela WADA (Agência Internacional Antidopagem) e fiscalizado no Brasil pela
ABCD (Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem): https://www.wadaama.org/sites/default/files/2022-09/2023list_en_final_9_september_2022.pdf
Vários alertas educativos à população e aos profissionais de saúde têm sido realizados pelas sociedades médicas envolvidas e pelo próprio Conselho Federal de Medicina.
A SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia), publicou posicionamento em 2022 sobre o uso de esteroides anabolizantes para fins estéticos e de performance, disponível no link:
https://www.endocrino.org.br/noticias/posicionamento-uso-de-esteroidesanabolizantes/
A SBMEE (Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte) também emitiu posicionamento: https://www.medicinadoesporte.org.br/wpcontent/uploads/2022/10/Dr.-Marcelo-DOC-2.pdf
A FEBRASGO (Federação Brasileira de Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia), anteriormente já havia se manifestado contra o uso de implantes hormonais, por falta
de estudos consistentes de eficácia e segurança: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1312-posicao-das-comissoes-nacionaisespecializadas-de-anticoncepcao-e-climaterio-da-febrasgo-sobre-implanteshormonais
Em março de 2023, as 8 sociedades envolvidas no cenário da prescrição hormonal (SBEM, FEBRASGO, SBMEE, Sociedade Brasileira de Urologia, Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Brasileira de Dermatologia, Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) se posicionaram cobrando a votação e aprovação da regulamentação pelo CFM do uso indevido de esteroides anabolizantes para fins estéticos.
Em abril de 2023 foi publicada a regulamentação pelo CFM, proibindo a prescrição médica de terapias hormonais para fins estéticos:
https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-proibe-a-prescricao-medica-de-terapiashormonais-com-fins-esteticos-de-ganho-de-massa-muscular-e-de-melhoria-dedesempenho-esportivo/
A Anvisa proibiu a publicidade de implantes de gestrinona em 22/12/2021, após alertas da SBEM e da ABESO: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-re-n-4.768-de-22-de-dezembro-de-2021-369770930
Ainda, a ANVISA incluiu essa droga na lista C5 de medicamentos controlados em 13/07/2022: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-734-de-11-de-julhode-2022-414784164
A conceituada cardiologista Dra. Ludhimila Hajjar manifestou-se em um artigo, na coluna Receita de Médico do Jornal O Globo, intitulada “Diga não ao chip da beleza”:
https://oglobo.globo.com/blogs/receita-de-medico/post/2023/05/diga-nao-ao-chip-dabeleza.ghtml
Inúmeras matérias têm sido veiculadas na mídia em relação aos riscos dos implantes hormonais, com exemplos de pessoas que tiveram efeitos adversos graves dessa prática.
O programa Fantástico apresentou extensa matéria, no dia 17 de abril de 2023 sobre o tema:
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/04/17/cantora-flay-fala-sobre-os-efeitoscolaterais-do-uso-de-hormonios-para-fins-esteticos-foi-com-o-chip-que-ganhei-10-
quilos.ghtml
No mesmo dia, o PodCast Isto é Fantástico abordou um caso de complicações:
https://g1.globo.com/fantastico/podcast/isso-e-fantastico/noticia/2023/04/16/osperigos-dos-anabolizantes-na-busca-pelo-corpo-perfeito.ghtml
No entanto, a publicidade enganosa e a prescrição abusiva continuam, apesar da ausência de comprovação de eficácia e segurança, agora somadas a associações de outras drogas, produzidas em escala industrial. As próprias “farmácias magistrais”, que fabricam os implantes hormonais, promovem e patrocinam “pseudocapacitações” de médicos como verdadeiros exércitos em cursos intensivos de final de semana, atraídos em contatos diretos nas redes sociais para venda e inserção de implantes.
A Anvisa precisa regulamentar a manipulação de medicamentos somente pela via de administração na qual o medicamento foi registrado. Uma via diferente necessita de dados científicos publicados de eficácia, segurança e desfechos a longo prazo.
A Anvisa precisa aprimorar o controle do uso de esteroides anabolizantes, seja através de notificação de receita A ou através de sistema eletrônico de prescrição, obedecendo as normas vigentes de identificação do prescritor e diagnóstico identificado por CID condizente com a indicação.
Diante do agravamento do cenário acima exposto, nós médicos representantes dos profissionais de saúde associados, cumprimos nosso dever através deste documento, urgindo que a Anvisa cumpra sua finalidade institucional:
“Promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados.”
Certos da tomada das medidas cabíveis de competência dessa Agência, subscrevemo-nos, atenciosamente, São Paulo, 21 de dezembro de 2023.
Bruno Halpern, Presidente da ABESO – Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica Paulo Miranda, Presidente da SBEM – Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Maria Celeste Osorio Wender, Presidente Eleita da FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
Fernando Carmelo Torres, Presidente da SBMEE – Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte
Levimar Rocha Araújo, Presidente da SBD – Sociedade Brasileira de Diabetes
Alfredo Felix Canalini, Presidente da SBU – Sociedade Brasileira de Urologia
Marco Tulio Gualberto Cintra, Presidente da SBGG – Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia
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